segunda-feira, 31 de agosto de 2020

VELUDO CORTANTE

O fulgor do clarão nublou meus olhos
e não vi o pus no pólen da flor.
Quando a névoa se dissipou,
e a mentira ficou despetalada,
demorei, mas por fim entendi
que eu mesmo abrira a porteira
para a bruma engolir a estrada.

Feito lâminas cegas e sádicas
os dias bailavam em minha carne
e eu, sonâmbulo anestesiado,
quanto mais andava mais afundava
na areia movediça do nada,
toda ela engendrada, aos poucos,
com o pó dos sonhos mesclado às lágrimas.

Quando a névoa se dissipou
e a chuva de pedras deu uma estiada,
o pássaro selvagem pôde voltar
a cantar sobre o fio da navalha.
A vida pode até ser amarga
mas ela também é amante.
hoje a chamo de veludo cortante.

(Marcelo Mourão)

Pintura: Chiaroscuro (2019), de Vincent Lignereux